sexta-feira, 14 de março de 2008

Ao apagar das velas


Curioso como algumas pessoas vão "encolhendo" com a chegada da velhice, numa tentativa involuntária de recolher, aos poucos, todos os vestígios de sua existência. Delimitam seus domínios e reservam espaço em volta para as memórias dos anos bem vividos. Minha bisavó é quase centenária. Nasceu no Brasil da República Velha, 24 anos após a libertação dos escravos. Viu as duas guerras mundiais, viveu duas ditaduras, os "50 anos em 5", o "milagre econômico", a invenção da televisão, a chegada dela ao Brasil, o advento da internet. Quanta história essa mulher de nome Rosa guarda na memória!

Mês que vem, ela completa 97 anos deitada em uma cama de onde, pelo que parece, não sairá mais até deixar este mundo. Até dois meses atrás, ainda andava pelo apartamento. Agora, os ossos não suportam nem alguns metros de caminhada. Restam a ela a fé, com que pede proteção aos familiares, e as lembranças guardadas nos retratos espalhados pelo quarto. Lembro-me de minha bisavó sentada na poltrona da casa da minha avó, na época de meus alegres 8 anos de idade (ela já estava em processo de recolhimento). Gostava de contar histórias para os bisnetos, as mesmas com que prendia a atenção de filhos e netos. A conclusão sempre era uma lição de vida. Quando aprontávamos na ausência de minha avó, uma mulher dona de imenso coração, mas bastante enérgica, dona Rosa lançava a ameaça: "quando ela voltar, eu conto tudo". Nunca foi capaz de delatar nossas travessuras.

Hoje, demonstra uma memória surpreendente para uma senhora que beira os 97. Sabe a data de aniversário de muitos familiares, sempre pergunta as horas e, apesar de não sair mais de casa, acompanha o calendário de cabeça, como se fosse um hobby. Na maior parte do dia, parece inerte, indiferente ao resto de vida que ainda tem pela frente. Mas abre um sorriso enorme com a visita dos descendentes. É nessas horas que vem a certeza de que ela teria muito para contar, inúmeros ensinamentos a acrescentar às novas gerações.

As pessoas passam pela vida e, quando a velhice bate à porta, perdem seu lugar neste mundo. São como um estorvo, um obstáculo ao crescimento, à renovação, à mudança. Pagam mais caro pela saúde, são vítimas da intolerância, da falta de paciência do mundo que tem pressa para rotacionar. Acabam encontrando um canto onde não incomodam, para recostar e colecionar as memórias, em uma incompreensível espera pela morte. E partem deste plano como arquivo morto de uma valiosa história de vida, que, no momento derradeiro, parece não valer mais nada.

4 comentários:

Andrea Rifer disse...

Meu, como podem tantas palavras sensíveis e sensatas caberem em uma só cabeça. Vc é lindo mesmo, e escreveu sobre algo que eu temo tanto, não só pra mim, mas para todos que amo.
Bj nesse coração lindo

Unknown disse...

Bruno, você é mesmo uma jóia rara.
Beijo

Flávia Saad disse...

Tenho tanto orgulho de você que nem cabe no meu peito (e olha que é grande, hein???)
hahahahahahaha
Mas, sério mesmo, gosto muito dos seus textos. Adoro quando você me pede para ler alguma coisa antes de entregar, só para ver em primeira mão.

beijos mil

Carlos Fernandes disse...

Bruno, o texto é perfeito, mas a imagem supera tudo, FANTASTICA!