quinta-feira, 20 de março de 2008

"A burguesia fede"


No olhar triste do menino, grita o sentimento de exclusão. Desconfiado, tenta se esconder. É um entre os milhares que habitam favelas na Baixada Santista, um dos milhões que vivem nas condições subumanas dessas habitações e que representam, no país das disparidades, 20% da população. Incluindo na conta moradores de cortiços, loteamentos clandestinos e outros tipos de submoradia, chega a 40% a quantidade de brasileiros excluídos, "escondidos" por imposição nos subúrbios dos aglomerados.

Lembro desse olhar quando ouço alguém discursar, em tom de revolta, que, pela redução das desigualdades, já faz sua parte pagando impostos. A lógica elitista joga para o governo a total responsabilidade pela exclusão, e lava as mãos. Perfeita definição é a do urbanista e cientista político João Sette Whitaker Ferreira, pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP. Ele diz que a maneira como os brasileiros vêem a pobreza e como os governantes conduzem as políticas de habitação, reservando às perifierias capengas e sem estrutura os conjuntos habitacionais, promove um gritante apartheid social, no pior sentido do termo.

Os pobres são no Brasil um tipo de refugo humano depositado bem longe das vistas da classe média e da elite, em uma periferia sem áreas de lazer, sem escolas decentes, sem hospitais de qualidade. A esses "dejetos" estão reservadas as sobras. Alimentam-se delas sem que ninguém precise ver. São lembrados quando integrantes desse refugo, produtos caricatos da exclusão, invadem condomínios de luxo, promovem arrastões na praia, matam à sangue frio, cometem atrocidades que ganham dimensões no alarde dos telejornais. Aí, a burguesia alienada, que nunca pisou em uma favela e olha com ares de inconformismo cada vez que passa, em seu carro, ao lado de uma, que atravessa a rua quando vê um negro mal vestido se aproximar, que, em um bar com os amigos, vira o rosto a uma criança que pede algo para comer, que usa drogas e alimenta o tráfico aliciador de menores sem esperanças na vida... essa elite sai às ruas vestida de branco, resumindo a solução à crise social a leis mais rígidas, pedindo providências do governo contra violência em protesto pela paz. Que paz tão almejada é essa, se os mesmos hipócritas semeiam o rancor e o ódio, fortalecem o tráfico e promovem a manutenção da miséria?

A miopia do Brasil se agrava com o tempo. Infelizmente, caminha-se para trás, e a cegueira é iminente. Nosso erro é olhar para o umbigo e não enxergar a raiz do problema. Mais do que a falta de educação e de moradia decente, o problema é o egoísmo e a falta de humanismo, de cidadania, de consciência social. Cada cidadão deveria conhecer ao menos um pouco do que é viver na exclusão da favela para ser menos mesquinho, menos cruel e transpor o mundinho medíocre em que vive. Deveria entrar em uma submoradia, sentir o cheiro que sobreviventes de palafitas se acostumaram a inalar, absorver em olhares a tristeza de não saber se amanhã haverá o que comer. E, quem sabe, fazer bem a quem precisa. Por mínimo que seja, todos têm algo a doar.
(A foto foi tirada em outubro de 2007, na favela de Santa Cruz dos Navegantes, no Guarujá)

2 comentários:

Andrea Rifer disse...

Bru
Pior do que o discurso do "eu já faço a minha parte pagando impostos" é aquele que se apropria da pobreza como uma bandeira para bater no peito. Sabe aquele tipo sem-terra danoninho? Sempre que vejo isso (e olha que vejo com frequência) tenho vontade de perguntar: você fez o que de útil hoje?

Karina disse...

Oi moço, obrigada pela visita, eheheh. Estou queimando os últimos neurônios na tentativa de descobrir o que é um sem-terra danoninho... e, também, envergonhada, atrás do monitor, pensando nas vezes em que ignorei o menino que pede esmola no bar ou no semáforo. Nessas horas, de tapa na cara, me sinto um nada, sem saber o que fazer...